segunda-feira, dezembro 22, 2014

light of my life, fire of my loins

Ele ligou o carro naquele domingo de manhã. Deu a partida. Ajeitei a franjinha curta, limpei os óculos. O quebra sol estava manchado pelo tempo. O couro creme e suas bordas demasiado amareladas. O cheiro gasto do estofamento. O cheiro do café servido em copos de isopor. Sorri ao movimento dos seus fios castanho claros quase nada grisalhos - e o cheiro mal disfarçado e permanente de cigarro. Não estava cansado. Tinha uma vida pela frente, ajeitava os cabelos curtos e colocava então os óculos escuros de aviador. Usava camisa de verão. De passeio. De domingo de manhã. De tudo e coisa nenhuma. Vestia o frescor daquela esperança dissimulada. Da fuga. Do simulacro de fuga e liberdade. Eu não estava mais em sua visão periférica. Estava ao redor. Estava ao lado. Olhava para mim, sorria. Olhava com convicção para meus shorts jeans falsamente desgastados. O sol lançava uma faixa quente sobre as minhas pernas. Sobre minhas mãos cruzadas. Sobre os tornozelos apoiados no painel. Subia sua mão direita com a naturalidade de quem sempre pôde fazê-lo. Suas mãos que me excediam por completo em pelo menos três décadas. O sorriso retangular apertava os olhos por trás das lentes escuras. E tudo ficava doce de repente, sua magreza contraída num riso convencional. E o céu azul se tornava alheio. O vento que entrava pela janela era demasiado real. Era fresco. Uivava através dos vidros. E o café, como era de se esperar, já estava frio.

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Eu fico aqui hoje

Em seus olhos havia muito sal. Na pele havia pouca dúvida, seus cabelos quentes pelo sol pendiam frouxos sobre os ombros. Sobre o nariz uma linha alaranjada. Sobre a linha poucas sardas. O pescoço para trás e o riso muito alto e muito perto. Sua pele quente sobre os lençóis tão frescos, a manhã tão clara. A janela de repente tão pessoal, de repente um mundo enquadrado, e eu sei que o que resta é a a lembrança dessa janela, é a visão de um instante tão comum, das árvores que se igualam a teu quarto em altura, dos pássaros que nelas habitam ou apenas pousam se anunciando, da vida pulsante e adormecida nas janelas logo em frente, o que fica são estes meus fios castanhos que tocam o assoalho - o teto tão vasto, a cabeça além do colchão e o ar tão fresco. 

segunda-feira, outubro 27, 2014

Segunda-feira

Nós estamos aqui, os olhos cerrados pelo sol do meio-dia, trigueiros de nariz franzido e pupilas contraídas, estamos aqui ajeitando a mochila sobre os ombros, guardando um suéter que outrora esteve pendurado em uma arara, impessoal, uma individualidade junto com tantas outras peças e tantos outros filmes e tantas outras músicas e livros aos quais vamos nos agarrar. E eu guardo o suéter agora meu e devidamente amassado na mochila, o suéter que eu posso amassar e guardar em meio a livros, papéis e uma infinidade de segundas e quartas-feiras. E estamos levemente presos ao chão, e como se não fôssemos de fato ingênuos, contemplamos o céu como quem fita as próprias mãos, e como se não soubéssemos que somos já tardiamente adultos, olhamos através da janela do transporte, a calçada a passar, tudo em seu lugar e tudo irremediavelmente em seu lugar, e tornamo-nos acostumados às chaves perdidas, às horas claras, às palavras não ditas, aos livros abandonados pela metade, àquela corrosiva simpatia dos jantares, tornamo-nos acostumados a dormir pouco e gozar o tempo perdido, e tornamo-nos acostumados a fechar os olhos e sentir a chuva de um filme que vimos e dormir planejando viver uma hora a mais amanhã, prometendo que amanhã o dia será mais longo e mais belo, que não haverá apatia, que o sol do meio-dia cerrará nossos olhos queimados e nada mais.

quinta-feira, setembro 18, 2014

Jantar em família

Porque todo dia era cinza e verde, e verde e lilás, e laranja e cinza e lilás e castanho, toda manhã era uma tarde sem fim, e com você toda tarde era amanhecer de olhos semi-abertos. E nós queríamos que todo dia fosse inverno, que toda garoa fosse vista da janela, que todo verde fosse nosso, que toda primavera fosse rosa claro e que o lilás de suas pálpebras fechadas pudesse cristalizar toda a inocência que fingimos ter. Não vamos adoecer. Suas pálpebras em lilás translúcido - e a certeza, não vamos adoecer, vamos viver pra sempre, vamos deitar em lençóis frescos e sonhar que toda tarde é cinza e verde, que toda garoa é vista de dentro, que o castanho de seus olhos estará guardado.

Eles sorriam e no dia seguinte seriam os mesmos. E no dia depois disso, seus sonhos seriam novamente repetidos e assim até a exaustão. E o ano que vem é um futuro agora tão possível até a gente perceber que já chegou o natal. E então o ano novo, e ao ar livre de olhos abertos somos os mesmos. O que são dois anos, cinco ou seis. O que é mais um ano? Ainda temos quinze, dezenove, vinte e dois, e aos trinta não teremos mais que pouco mais de vinte. E o que fazemos da vida? Sim, vivemos bem, não, não, tenho emprego, aí tem a carreira acadêmica, entende. Daqui a alguns anos, sim, daqui a alguns anos, não sei, vou traduzir, publicar. É, não sei, tenho que ver, só pesquisa mesmo.

Não estão envelhecidos e cansados, estão? Não, ainda são tão jovens, há muitos anos já que são tão jovens quanto poderiam ser, e ano após ano, que fazer? Afinal, são poucos anos. Sim, tem que correr atrás dos seus sonhos, sabe? Você merece. Estuda, poxa, que bonito, eu admiro isso, mas - e o que você vai fazer?

Suas pálpebras em lilás translúcido - e a certeza, não vamos adoecer, vamos viver pra sempre, vamos deitar em lençóis frescos e sonhar que toda tarde é cinza e verde, que toda garoa é vista de dentro, que o castanho de seus olhos estará guardado.

domingo, agosto 31, 2014

Luz do sol

ela abria os olhos
e era pequena
menor ainda
que os lençóis em que dormia
menor ainda
que a garoa vista de dentro
de dentro via
rosa
lilás
verde, cinza
rosa
cinza
translúcido
via que
estava parada
permanecia imóvel
em movimentos circulares
um
dois
três
quatro, cinco
cinco
permanecia
imóvel
em si mesma
e via apenas
que no ar há sons
que ela mesma só via
no quadro de suas cores
sob suas pálpebras fechadas
pelo sol que parecia queimar
e abria os olhos
ainda menor

quinta-feira, agosto 14, 2014

Almoço em casa

Casualmente, ele deixou o garfo pousar no prato. Casualmente fez-se aquele som tão familiar, que no ambiente corta o silêncio sem interrompê-lo. Levou o guardanapo aos lábios, não que estivessem sujos. Fitou brevemente a janela, a linha de seu olhar acima dos olhos dela. 

Ela, ao enganar-se, quis sorrir. Fitou as mãos dele, sua camisa, as flores do papel de parede já desbotado, bebeu do suco, levou uma garfada à boca e por sua vez, pousou delicadamente os talheres no prato.

Ela baixou os olhos, como que pensativa ou alheia. Ele tornou a olhar na direção da janela, que estava aberta. Quis dizer que seus cabelos tinham um tom de mel quando contra a fraca luz do sol que vinha de fora - uma cor fugaz da luz do meio-dia de outono que o fazia lembrar um livro que lera, ou um filme que assistira já há muito tempo. Ou talvez de nada disso. Quis dizer que gostaria de fotografá-la, se soubesse como fazê-lo. Quis dizer que através daquela janela aberta, da luz que chegava em seus olhos filtrada por seus fios castanhos - através daquela luz, quis dizer que ouvia música. Quis dizer que ouvia um som distante de um disco de vinil, conservado por saudosistas românticos e apagados como ele. Quis dizer que estava linda. Quis levantar da mesa, quis ir lá fora, quis que no assoalho houvesse um tapete, quis que junto à parede houvesse um vinil que, como ele, permanecesse girando sob uma agulha fina e gentil. Quis vê-la nua como na primeira vez - e ela certamente iria sorrir, ela certamente baixaria o rosto e sorriria por baixo de seus cachos castanhos em desalinho. Quis dizer que gostava de qualquer paisagem no outono. Quis enterrar seus dedos nos seus cabelos penteados.

Após examinar longamente o padrão de sua sua camisa, ela subiu olhar aos olhos negros que agora lhe fitavam. Ele sorriu, e em seu sorriso havia uma amargura que ela desejou não reconhecer.

quarta-feira, julho 02, 2014

Lolita


Eu estive pensando - disse. Eu estive sonhando - e dormindo. Eu estive confusa - disse, resoluta. Seus cachos na luz amarelada, a selva de seus cílios pretos fazendo sombra sobre as sardas. E eu estive pensando - disse, o pescoço para trás, como quando outrora prensava os cabelos contra a parede. E os olhos apertavam-se em uma simpatia infantil e inesperada. E eu estive pensando - e deitava novamente a cabeça no travesseiro, e novamente ria entre seus cabelos pretos e a alvorada tão casual. Eu não quis dizer - e suas costelas então arfantes estavam de repente sob a luz natural. E com uma voz que era não mais que um terceiro, soltou um riso trêmulo, indo embora com uma desfaçatez pueril.

Fotografia: Ananda Campello

terça-feira, maio 27, 2014

Outono

Mas você nunca acreditaria em mim, ela disse. Os cabelos molhados corretamente desembaraçados sobre os ombros vestidos. Os dentes a despontar em seu brilho de um branco que ganhara tons de verniz amarelado. O rosto demasiado limpo, a pele sobre os ossos agora era luz e sombra. Uma mariposa de tons azulados voou pelo quarto, pousando fatidicamente no copo com água esquecido sobre o criado-mudo. O animal descorou-se brevemente, deixando sua tinta preta descer espiralada pelo copo como um pincel em aquarela. Você nunca acreditaria. Fez-se uma pausa e sua garganta apertou-se novamente. Fez-se uma pausa e ela imaginou que tirava a mariposa do copo com um lápis - não o fez. Era dia, e uma folha seca pôde entrar pela janela. Contida e estranhamente leve, fez-se perplexa diante de tais incidentes - como tudo pode tornar-se estranho! Não tornou a dizer, mas nós sabíamos - eu nunca acreditaria.

segunda-feira, maio 19, 2014

A janela do quarto, em seu vidro emoldurado, era só espera, era só um talvez permanente - uma serenidade inquietante. A madrugada, ao suspender o tempo e a ação, é a hora mais concreta. E do lado de lá da janela era também a hora mais fria e mais escura, e então a imagem não mais emoldurada ardia em seus pulmões, penetrando-lhes a cada piscar ritmado de olhos, e seu rosto contorcia-se em um sorriso infantil e clandestino. E sabia que desceria ao chão, os olhos fixos na parede, de joelhos diante de - diante de algo ou alguém que ela não ousaria evocar, mas esperava desconcertada. Sim, havia histórias, havia rumores. Ponderando sobre elas, sabia que nada havia de mais concreto que a neblina - a neblina de lá de fora, e ela imaginava como seria se estivesse em seus pulmões.

domingo, abril 20, 2014

Carmilla

Eram muitas veias e não se sabia quanto sangue havia ali, e nada se podia supor sobre os caminhos lilases e o verde menta pulsante a formar aquarelas na pele demasiado alheia. Nas notas em pastel e nos fios muito pretos só se podia especular - e ela devia sorrir de confusão e ser graciosa. Na penumbra e no sol a despontar, pálido e precoce, os caninos de tempos eram expostos - mas nada respondiam em sua insuportável doçura.